quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Para a frente é que é o caminho.

De olhos postos no semáforo ainda vermelho, conta os carros que passam para não se lembrar de que afinal, está mesmo atrasada. Os carros passam. Não vê marcas nem cores. O hábito cega. Via apenas o semáforo. O dia era de chuva, céu cinzento carregado, chão escorregadio e repleto de poças. Um carro aproxima-se junto da passadeira. O semáforo continua vermelho. A chuva miudinha começa a cair. Enquanto procura o chapéu-de-chuva na carteira, o carro passa e aproxima a roda da berma onde a poça era profunda. A chuva vinda do chão misturada com lama cai sobre quem já não tinha os olhos postos no semáforo. Solta palavras de raiva e quando sente que as pessoas em torno de si avançam, faz o mesmo. Em silêncio.

Até à paragem do autocarro, todos que passam olham sem ver e caminham como se programados. Tal e qual máquinas humanas com pele, alma, coração mas que pelos vistos têm um interruptor ao lado onde diz "on/off". As passadas parecem estudadas, ponderadas mas automáticas. Ela também não desvia o olhar para o lado a não ser quando chega à paragem. A fila de pessoas é grande mas agora “é tudo rápido”, pensa para si. Falta um minuto para a chegada do autocarro mas esse minuto ficou intermitente mais de cinco. Mas chega. Abrem-se as portas e a fila rapidamente se define em frente da porta do autocarro, esquecida ou não da ordem de chegada inicial. Senta-se. Contrariamente ao habitual há um lugar livre. Sucedem-se as paragens, nada de novo e as calças continuam molhadas. Ao prever a chegada ao seu destino, levanta-se mas esquece-se de erguer o braço o suficiente para segurar a carteira que cai no chão do autocarro que já parou. As portas abrem e por entre encontrões e palavras menos simpáticas, baixa-se e apanha a carteira que todos fingem não ter visto cair. Sai.

Caminha de olhar erguido. Quer esquecer que está irritada. Com quem? Com o mundo, talvez. Calças molhadas, carteira segura e sorriso fechado. Põe os phones nos ouvidos. Assim os que passam julgam-na distraída e desistem do “bom dia”. Chegou a uma passadeira. Recua. Costumam dizer que ninguém cai duas vezes na mesma esparrela. O semáforo abre para os peões e ela avança. Nos carros, parados perante a sua passagem, vê mundos sobre rodas esquecidos dos mundos que ao seu lado também pararam. Uns falam ao telemóvel através do kit mãos livres – parecem discutir com ninguém, consigo mesmos, com o mundo sem rodas que passa lá fora e que afinal é mudo. Outros batem com os dedos no volante ao ritmo da música que se pode adivinhar. Há ainda quem aproveite para se pentear, retocar a maquilhagem, obrigar o espelho a não denunciar as imperfeições das máscaras que nem sempre disfarçam a ruga e o tempo que já passou. Acelera o passo. Chegou ao outro lado e não olhou para trás. Para a frente é que é o caminho. Pelo menos é para lá que todos parecem querer ir. Até porque o mundo já não é o que era. Já ninguém olha para os lados, muito menos para baixo. E ousar olhar para trás é pecado, crime. É como se nada ficasse para trás, como se nada pudesse ficar para trás, como se não existisse “para trás”. E agora não há volta a dar. Ou até há, mas não para trás. Por isso, para a frente é que é o caminho.

3 comentários:

Ana Margarida Pinheiro disse...

"É como se nada ficasse para trás, como se nada pudesse ficar para trás, como se não existisse “para trás”. E agora não há volta a dar. Ou até há, mas não para trás. Por isso, para a frente é que é o caminho."

Grande Ana *

terrible gui disse...

Olha eu, e toda a fauna estudantil da FCSH a atravessar a Avenida de Berna!

Inês Moreira Santos disse...

Ana Filipa... fiquei deliciada a ler este texto! Tenho de cá voltar com mais tempo para ler os outros.

Adorei MESMO!

Beijinho colega ******